ANÁLISE DE TIRINHAS (032): REPERTÓRIO - O BACKGROUND DA LEITURA


O leitor não pode e não deve ser tomado como um "receptor passivo" no momento da leitura; pelo contrário, a leitura somente é possível quando a um conjunto articulado de signos (texto, imagem, gesto, tela de pintura, filme, etc.) se conjuga um leitor que carrega consigo um repertório prévio a fim de produzir sentido(s).

O termo "background" (chão anterior, chão já pisado) revela até melhor a importância do repertório para as operações do ler. Como sustentáculo da interpretação-compreensão, o background é formado por todas as experiências prévias do sujeito, incluindo aí as experiências de natureza linguística, a literária, a valorativa, a estética, etc. 

Um repertório (background) denso e rico aponta para a complexificação da subjetividade do leitor, ou seja, à de um sujeito com uma significativa somatória de experiências vividas pela frequentação a diferentes gêneros de escrita ou de outras linguagens sociais. Lembrar que as experiências são sempre encarnadas em linguagem, o que nos permite pensar no incremento de vocabulários para fruir textos diversos.

Na tirinha acima temos um claro exemplo de troca de referenciais pelo repertório que o leitor carrega consigo. A menina está falando dos grandes autores de obras literárias (Jorge Amado e Machado de Assis), mas o Zé interpreta e compreende a sugestão como sendo o "machado" (instrumento cortante) e alguma pessoa chamada "Assis" - desta forma, por uma limitação na esfera do seu conhecimento literário, Zé interpreta a mensagem a partir do seu repertório, que inclui tão apenas "machado" (objeto) e "Assis" (talvez alguém que ele já conheça).

Vale insistir: leitor maduro = repertório denso (experiências+linguagem) = subjetividade complexa.

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A literatura oral nos fornece um exemplo magnífico de uma anedota relacionada a um fato acontecido com Rui Barbosa, em que dois repertórios desnivelados não levam ao entendimento do texto do diálogo. Caso típico em que os backgrounds não levam à compreensão. 

"[...lá vinha Rui Barbosa andando pela zona rural quando a estrada chegou à beira de um rio.  Havia uma balsa amarrada a um tronco, e nela um negão forte, que era o remador.  Rui, cansado de andar, apoiando-se numa bengala, dirigiu-se a ele:

“Ó, nobre etíope de estatura avantajada!  Quanto queres de remuneração pecuniária para trasladar meu indelével corpo deste polo àquele hemisfério? Peço-te que uses de magnanimidade ao fazer o cômputo da remuneração monetária a que tens direito, porque apesar da sisudez de minha indumentária estou longe de ser um nababo ou potentado, e não disponho de lastro fiduciário para fazer frente a um débito de maiores proporções”.

O barqueiro ficou perplexo e disse algo como: “Eita doutor, o senhor tá falando inglês?!” Rui tornou de imediato: “Ah, aborígine de mentalidade incúria!  Se o dizes por mera ignorância intrínseca ao teu ser, e por falta de luzes civilizatórias auferidas na mais tenra infância, então transijo.  Mas se pretendes menoscabar a minha alta prosopopeia, pespegar-te-ei um golpe, com meu poderoso báculo, que irá fender tua caixa craniana e espalhar pela paisagem a massa encefálica de que não fazes uso, produzindo um ribombo tão ensurdecedor que fará estremecer o entroncamento das sequoias e afugentará para sempre as aves migratórias deste meridiano!”.

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